Especialistas ouvidos pelo G1 criticaram regras definidas por medida.
Presidente Dilma sancionou na semana passada MP que acelera acordos.
Filipe Matoso e Fernanda Calgaro
Do G1, em Brasília
Editada pelo governo federal na última sexta-feira (18) com a justificativa de evitar demissões, a medida provisória que implementa novas regras para os acordos de leniência gerou duras críticas de especialistas no assunto. Juristas ouvidos pelo G1 afirmam que a MP, publicada no "Diário Oficial da União" nesta segunda (21), "acoberta" empresas corruptas por permitir que as companhias, mesmo sob sanções, possam assinar novos contratos com o poder público.
Acordo de leniência é aquele em que uma empresa envolvida em algum tipo de ilegalidade, em troca de redução da pena ou até mesmo da eliminação das multas, denuncia o esquema e se compromete a auxiliar um órgão público na investigação. O dispositivo é semelhante às delações premiadas, mas envolve exclusivamente pessoas jurídicas.
Apesar de entrar em vigor imeadiatamente, a MP precisará ser apreciada pela Câmara e pelo Senado em até 120 dias para não perder os efeitos.
Entre outros pontos, a medida provisória enviada pelo Palácio do Planalto ao Legislativo prevê que penalidades previstas na lei da licitação, como autorização para a empresa voltar a assinar contratos com a administração pública, sejam utilizadas no acordo de leniência.
Autor do livro "Comentários à Lei de Sociedades Anônimas" – obra que analisa a legislação sobre o assunto –, o jurista Modesto Carvalhosa classificou ao G1 de "escandaloso" o objetivo da medida provisória dos acordos de leniência. Na visão do especialista, o governo lança uma "cortina de fumaça" para manter os contratos das construtoras envolvidas em esquemas de corrupção com o poder público.
"O objetivo desta MP é escandaloso. É permitir que empresas envolvidas em corrupção continuem a contratar com o governo federal. Este para mim é o ponto principal. É uma cortina de fumaça para as empreiteiras poderem continuar a contratar com todo o poder público", ressaltou Carvalhosa.
"Esta MP vai acobertar empreiteiras para que elas possam voltar a operar acordos com o governo", acrescentou o jurista.
Para o jurista, embora a MP estabeleça as sanções da Lei de Licitações, as penalidades previstas nessa legislação, como pagamento de multas, são incompatíveis com os crimes que possam ter sido cometidos pelas empresas. "[Essas penas] são uma bobagem", enfatizou.
Modesto Carvalhosa disse ainda que as grandes empreiteiras "não se inibem" diante de multas e, mesmo com a adoção de medidas de controle interno, na prática, "não diz nada". "Elas [as empreiteiras] já adotam essas ações, e continuam corrompendo o sistema", completou.
Ex-integrante do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) – autarquia ligada ao Ministério da Justiça que, entre outras atribuições, é responsável pela negociação de acordos de leniência –, a professora Ana Frazão afirmou ao G1 que o conteúdo da MP é "preocupante" porque o "principal ponto" é o que permite a inclusão de mais de uma empresa em um acordo de leniência. Especialista em direito econômico e empresarial, a professora da Universidade de Brasília (UnB) pondera que estender o acordo a todas às empresas envolvidas no ato ilícito e permitir o acordo em qualquer fase é "muito preocupante".
"Por uma simples razão: a ideia do acordo se baseia no pressuposto de que, em se tratando de crime corporativo, envolvendo agentes privados e públicos, é preciso ter uma fonte de incentivo para que alguém denuncie a prática. Se não há o incentivo para denunciar, os agentes podem decidir ficar na zona de conforto e não denunciar", observou Ana Frazão.
Preservação de empregos
Na cerimônia em que lançou a MP dos acordos de leniência, na última sexta, a presidente Dilma Rousseff afirmou que a medida assinada é um "conjunto de aperfeiçoamento" dos mecanismos do acordo de leniência. Segundo o governo, as modificações na legislação visam preservar empregos.
A presidente argumentou que decidiu enviar uma MP ao Congresso, apesar de já existir um texto em tramitação no parlamento com o mesmo conteúdo, porque o governo foi informado de que a proposta só será votada na Câmara no ano que vem, após o recesso parlamentar.
A partir de agora, uma comissão especial do Congresso Nacional deverá analisar a medida provisória em até 120 dias. Se em até 45 dias o Legislativo não aprovar a medida, ela passa a trancar a pauta de votações. Após a análise pela Câmara e pelo Senado, o texto voltará ao Executivo para sanção ou veto de Dilma.
"O propósito maior é diminuir a incerteza e preservar empregos. Ela [MP] vai ao encontro de um dos temas da pauta do pacote pelo desenvolvimento que recebi na última terça [15] de representações sindicais e empresariais", declarou ela na ocasião.
O presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Vagner Freitas, – destacou no ato de lançamento da MP que os desdobramentos da Operação Lava Jato têm resultado no desemprego de trabalhadores. As investigações do esquema de corrupção que atuava na Petrobras sugaram para o turbilhão algumas das principais construtoras do país, responsáveis pela geração de milhares de empregos.
"Essa medida provisória que está sendo construída aqui por todos nós, empresários e trabalhadores, significa muito para a manutenção dos empregos. O grande problema para os trabalhadores no Brasil, hoje, é a quantidade enorme de desemprego, até porque a Operação Lava Jato é responsável por uma quantidade muito grande de desemprego", ponderou o dirigente sindical.
No mesmo evento, o então ministro da Controladoria-Geral da União, Valdir Simão – que assumiu o comando do Ministério do Planejamento – disse que a MP dos acordos de leniência resulta em "aperfeiçoamentos" da Lei Anticorrupção.
"Esses aperfeiçoamentos não envolveram discussões somente na CGU, envolveram também os ministérios da Justiça, do Planejamento, a Advocacia-Geral da União e o Ministério Público Federal", destacou.
Programa de 'salvamento'
O teor da medida provisória do acordo de leniência também é criticado pela auditora do Tribunal de Contas da União (TCU) Lucieni Pereira, presidente da Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo dos Tribunais de Contas do Brasil (ANTC). Ela adiantou que a entidade pretende recorrer à Justiça para tentar barrar a MP.
"É líquido e certo que vamos entrar com uma ação direta de inconstitucionalidade no Supremo", disse Lucieni ao G1.
Na avaliação da auditora, a proposta funcionará como "um programa de salvamento de empresa corrupta". "As empresas estão com dificuldades para fechar o ano e o governo, vendo que a Câmara não iria conseguir votar a tempo o projeto em tramitação no Congresso, decidiu editar a medida provisória."
Ela diz ainda que, nos moldes propostos pelo governo, o acordo de leniência atinge matérias que têm reflexo em questões de natureza processual civil, o que, segundo ela, não pode ser objeto de medida provisória. Diante disso, argumenta, cabe questionamento judicial.
Lucieni também faz coro à avaliação da professora Ana Frazão de que a medida provisória irá desincentivar as empresas a procurarem um acordo com a administração pública, já que, atualmente, tem direito ao acordo de leniência a primeira companhia que apresentar fatos novos para auxiliar na investigação.
Com a mudança na lei, destaca a presidente da ANTC, outras empresas envolvidas no mesmo esquema poderiam aderir depois e se beneficiar do acordo.
Fonte: g1.globo.com.